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Mais do que uma reflexão preta e branca
Em homenagem ao Dia da Consciência Negra (20 de novembro), o SINASEFE-IFBA entrevistou três militantes do movimento negro, que abordam, entre outros aspectos, a importância da luta contra o racismo e o atual cenário de segregação no Brasil.
SINASEFE-IFBA: Como é ser negro(a)?
EnviarMarcilene Garcia – Socióloga, Doutora em Sociologia pela UNESP, pesquisadora sobre Relações Raciais e professora do Departamento de Sociologia do IFBA Salvador.
A pergunta me traz reflexões propostas por Franz Fanon no obra: “Pele negra, máscaras brancas”, mas também da saudosa Neusa Santos no livro: “Tornar-se negro”. Existe uma questão central na análise das relações raciais no Brasil. São as nuances do tipo de “racismo à brasileira”, aparentemente baseada na cordialidade, mas fundamentalmente sofisticado, perverso e excludente. Me refiro à “violência racista”, que afeta a população negra vítima da “violência física e simbólica” de forma constante e institucionalizada, mas também pela concentração de pobreza e de estigmas de inferiorização de sua cultura, de sua história.
Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 1993, naquela música “Haiti” já denunciavam: “todos sabem como se tratam os pretos”. Contudo, não se pode deixar de explicitar que o nosso modelo de racismo, muito eficaz na sua metodologia, reforça uma identidade negra destruída e alijada dos seus valores, da sua cultura, de sua história, de sua estética e de seus processos de resistência. Portanto, uma questão importante quando se pensa o Brasil e sua característica do racismo, que é baseado no fenótipo, é refletir sobre o ser branco. O que é ser branco no Brasil? Quais são as vantagens e os privilégios que uma sociedade racista antinegro garante aos brancos?
Fabiana Costa – Mestre em Sociologia e professora do Departamento de Sociologia do IFBA Simões Filho
Não creio que exista uma única resposta para a questão de “como é ser negra/o”. Estas múltiplas experiências se relacionam aos outros fatores ou eixos identitários que se interseccionam com a identidade racial (aspectos ligados à classe social, às relações de gênero, de sexualidade, etc). Ser um jovem negro na periferia de uma grande cidade ou ser uma mulher negra transgênero permitem formas diferentes de experienciar o racismo, as opressões de gênero e conferem a esses sujeitos tensões e possibilidades distintas de luta. Há, entretanto, algumas aproximações em todas essas possíveis experiências. Em um país cujo passado e presente se construíram sobre a pedra do racismo, ser negra/o, certamente, é travar uma luta diária contra os estigmas e contra o preconceito.
Maria Júlia Vieira – Aluna do Curso Técnico Integrado em Informática do Campus Seabra
Ser negro(a) é nascer com um defeito. Diante de um processo histórico de escravidão, onde a Igreja Católica legitimava e patrocinava a invasão e a exploração, entre outras coisas, tivemos um conjunto de negações, no qual éramos, simplesmente, força de trabalho e tínhamos que resistir e sobreviver ao navio negreiro e, logo após, a senzala. Sabemos também que, depois da “Abolição” da escravatura, continuávamos escravos, uns de ganho outros não, e nos restou as margens das cidades para construirmos nossas casas e tentarmos, mais uma vez, sobreviver, porém agora a luta mudava de caráter. Lutar contra a negação de direitos com o nosso povo, onde não tínhamos escolas, hospitais, saneamento, etc. como quem “não era de cor” (brancos). Isso tudo nos faz carregar uma bagagem muita pesada todos os dias, independente de qual é o destino. Junto com nossa bagagem continua a negação de direitos civis e a nossa exclusão de determinados espaços. Aquela ideia de que nascer negro é nascer amaldiçoado não acabou, portanto ser negro dentro de um espaço de exclusão, segregação, é nascer com um defeito que levaremos para o resto de nossas vidas. Ser negra(o) é muito mais que difícil, é sobreviver ao sistema, pois ele tenta nos calar e nos enterrar vivos todos os dias.
É importante ressaltar que não é, de fato, um defeito ser negro(a). Muito pelo contrário, para mim é um motivo de muito orgulho, porém o sistema quer fazer com que pensemos assim.
SINASEFE-IFBA: Qual a importância do Dia da Consciência Negra?
Fabiana Costa – O dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é, antes de tudo, um marco de luta. As batalhas contra o racismo são travadas por nós todos os dias, é claro, mas a existência do Dia da Consciência Negra neste calendário de lutas tem a importância de reavivar sempre o debate sobre o racismo que em determinados espaços sociais costumam ser silenciados. Falar de Consciência Negra em um país que, há poucas décadas atrás, acreditava no mito da democracia racial e que, ainda hoje, insiste em naturalizar a morte de tantos jovens negros/as abatidas/os pelo racismo institucionalizado é algo mais que necessário.
Marcilene Garcia – A Lei 12.519 de 2011 instituiu, oficialmente, 20 de novembro como sendo o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. A data lembra a morte, em 1695, do líder negro Zumbi dos Palmares e que, desde 1997 entra para o panteão dos heróis nacionais. Atualmente, em mais de 1000 cidades brasileiras “20 de novembro” é feriado municipal. Contudo, penso que uma das grandes contribuições do dia 20 de novembro é o de possibilitar pensar o Brasil e as suas desigualdades marcadas pela face negra. O jogo contraditório do racismo e da negação da cidadania para negro(a)s (onde seis direitos são negados) comprovam que não há desenvolvimento justo do Brasil sem participação da população negra. É preciso pensar a sociedade com o(a)s negro(a)s e desde o(a)s negro(a)s. Grandes desafios para o enfrentamento ao racismo têm sido a violência que incide sobre o(a)s negro(a)s, destacadamente na juventude negra, entre as mulheres e os adeptos de religiões que têm tradição africana. Outro obstáculo central tem sido, historicamente, a Educação, para além da pobreza.
Do ponto de vista social e econômico, todos os indicadores apontam que o pertencimento negro tem sido marca de diferenciação ao longo da história do Brasil e, mesmo observando a eficácia de algumas políticas públicas, tem tido efeitos diferentes entre branco(a)s e negro(a)s, mantendo sempre um “fosso” entre os dois grupos, em que o(a)s negro(a)s continuam em desvantagem – desigualdade racial. Os dados de diversas pesquisas revelam que há uma desvantagem no “ponto de partida”, mas também nos estágios de competição social, por exemplo, na Educação e no mundo do trabalho, onde há nesses casos um aumento da discriminação em situações específicas, ou seja, quanto mais escolaridade, mais probabilidade de acumular discriminação e desvantagem – um perfil de discriminação que vai se retroalimentando nas suas multifaces no decorrer do tempo.
Destaca-se, neste sentido, a necessidade da implementação de políticas de ações afirmativas para a população negra. Estas ações são entendidas como políticas de promoção de igualdade de oportunidades levando em consideração os processos de injustiças históricas e discriminação, a ideia de justiça distributiva na análise e formulação das políticas públicas.
SINASEFE-IFBA: Quem são os maiores ícones (da atualidade) da luta pelo fim do racismo e pela igualdade racial? Por quê?
Maria Júlia Vieira – Vilma Reis, Conceição Evaristo, Maria Stella de Azevedo Santos (Mãe Stella de Oxossi), Abdias do Nascimento, Fernanda Moscoso, Ruth de Souza, Jarid Arraes, Dayse Sacramento, Lélia Gonzalez, entre outras pessoas que admiro e inspiram a luta. Cada pessoa citada acima contribuiu ou contribui, em suas especificidades, no combate ao racismo e no fortalecimento do povo negro. Principalmente as mulheres citadas, pois elas, além de enfrentar a luta do racismo, enfrentavam o machismo, entre outras coisas, pois sabemos que a mulher negra se encontra na base de tudo, sendo assim sofrem mais com o racismo.
Marcilene Garcia – Apesar de invisibilizados, sempre houve, desde que os africanos chegaram ao Brasil em condição de escravizados, ícones negros na luta pela liberdade, pela abolição da escravização, assim como na luta por igualdade de oportunidades até hoje. Contudo, não se pode deixar de considerar que muitos destes ícones negros estiveram, de alguma forma, organizados em algum tipo de associação, irmandades religiosas, terreiros, clubes, grupos, quilombos, ONG´s e que, muito recentemente, em função da Lei 10.639/2003 – que tornou obrigatório o ensino de história da África, Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas, muitas destas personalidades negras passaram a ser estudas, evidenciadas e reconhecidas. Muitos destes ícones negros, como são os irmãos engenheiros André e Antônio Rebouças, nasceram na Bahia.
SINASEFE-IFBA: Como o Brasil, em especial a Bahia, tem se comportado quando o assunto é pôr um fim no preconceito racial?
Fabiana Costa – Sob certo ponto de vista, a existência de uma lei criminalizando o racismo e mesmo as políticas de ações afirmativas já implantadas, como as cotas em universidades públicas, dentre outras, são alguns dos avanços que precisam ser considerados na realidade brasileira. Estes avanços, entretanto, não foram concessão do Estado, nem caíram de paraquedas, eles são resultado de uma luta muito intensa dos movimentos sociais, especialmente das diversas correntes do movimento negro brasileiro. Precisamos considerar que, apesar destes passos significativos, ondas reacionárias ainda constituem também o cenário brasileiro: no plano concreto a criminalização do racismo ainda é obstacularizada pelo processo judiciário moroso e os passos necessários para a garantia de liberdade e respeito à diversidade são constantemente ameaçados por uma bancada política preconceituosa.
SINASEFE-IFBA: Quais ações são necessárias para mudança da realidade social da população negra em todos os âmbitos e, inclusive, na escola?
Marcilene Garcia – Mudar a realidade é necessário. Conhecer a realidade é imprescindível. Investir em políticas públicas de combate as desigualdades focando em territórios mais vulneráveis, e ampliar os programas de ações afirmativas focadas na população negra, seja na Educação, Saúde e mundo do trabalho, são estratégias importantes de mudanças da realidade da população negra. Contudo, é de extrema importância que os órgãos responsáveis fiscalizem e façam o monitoramento destas políticas para melhor compreender seus desafios e construir formas mais efetivas de resultados considerando a finalidade de cada política.
SINASEFE-IFBA: O que é preciso para superar o racismo?
Maria Júlia Vieira – Para que o racismo acabe, primeiro, precisa morrer a ideia de que negro(a) é inferior ou algo do tipo. Outro fator de extrema importância é que nós, enquanto negros e negras, podemos contar a nossa própria historia e podemos começar a ocupar todos os espaços, pois, por causa do racismo, somos excluído(a)s de determinados lugares e, por sua vez, silenciado(a)s. Mas, acima de tudo, o que pode vencer o racismo é a nossa resistência. Acabar com o racismo não é esquecer o que aconteceu com o nossos antepassados, muito pelo contrário, é ver os frutos colhidos pela luta dos mesmos. RESISTÊNCIA SEGUE!
Fabiana Costa – Para que os avanços na luta antirracista continuem se processando é preciso que todas/os nós sejamos agentes desse processo. A escola, em particular, pode e deve ser um campo propício para esta luta. A Lei 10.639/2003 (que inclui estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional nos currículos do ensino formal) é um passo importante, mas precisamos fazer com que todos os sujeitos que ocupam esse espaço (estudantes, docentes, técnicos administrativos em Educação e Gestão), sintam-se parte da luta contra todas as formas de preconceito e reconheçam seus silêncios, sobretudo no que diz respeito à gestão escolar, como violências e formas de perpetuação do racismo institucional. Reconhecer qual a sua postura e as implicações reais desta é uma forma de reavaliar posicionamentos e assim criar as possibilidades para uma efetiva mudança na realidade.
Fonte: SINASEFE-IFBA